quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Charlatanismo e Curandeirismo

INTRODUÇÃO

As culturas das sociedades formaram-se com a evolução de diversas características relativas ao homem, algumas vezes específicas de um determinado grupo; por outras com a interação ampliaram o desenvolvimento destas características.
A espécie humana possui uma grande diversidade cultural, causando “numerosas polêmicas”(LARAIA, 2008). É natural que diante dessa diversidade observe-se o mesmo numero de questões problemáticas que envolvem a utilização desvirtuada das manifestações culturais.
Talvez em alguns casos, essas manifestações façam parte do processo de endoculturação pelo qual passam as sociedades. Esse pode ser a forma pelo qual no campo do direito, alguns fatos são considerados crimes e outros não. Na obra do professor Roque Laraia fica claro que essas atitudes não tem cunho biológico, sendo portanto eminentemente sociais, portanto passíveis de um nível diferente em uma sociedade quando comparada a outra.
Neste sentido podemos observar que a vergonha pela ação da corrupção em uma país como o Japão pode levar ao suicídio, enquanto no Brasil essa mesma atitude acaba em “pizza”.
Nesta análise focaremos a ocorrência do curandeirismo e do charlatanismo analisando seu aspecto cultural e legal.

CURANDEIRISMO E CHARLATANISMO: Aspectos Legais e Culturais
O Código Penal Brasileiro recepciona como crime a prática fraudulenta do Charlatanismo e do Curandeirismo.
Em um pais como o Brasil, em que crendices populares provenientes da cultura de povos de origens diferentes são comuns, torna-se um campo fértil para a proliferação de indivíduos que, baseado nessas crendices, tentam deflagrar uma espécie de medicina alternativa, barata e milagrosa.
Em face da imensa desigualdade social muitos brasileiros, que têm naturalmente difícil acesso aos profissionais de saúde, são facilmente ludibriados pelos apelos fraudulentos de charlatães e curandeiros, que na essência prometem a solução para seus problemas. Caracteriza-se a prática do curandeirismo de tal forma alastrada que em alguns casos se tornou comum.
Por outro lado a história mostra que a interpretação da prática cultural do curandeirismo passaram por diversas etapas para que tivessem atualmente uma análise ponderada. Na resenha escrita por Mundicarmo Ferreti em artigo publicado no Caderno Pós Ciências Sociais da UFMA, analisando a obra da Professora Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Sortilégio de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros, o autor menciona a confusão de julgamento que era realizada pelos magistrados, uma vez que era recheada de intolerância pela religião afro-brasileira. Na mesma análise cita o artigo que:
“A dicotomia magia-religião que fundamentou o pensamento dos juizes nos casos analisados, embasou também uma classificação etnocêntrica de terreiros e de denominações religiosas afro-brasileiras”.


Esse histórico demonstra que a construção da interpretação do direito sofreu os efeitos da cultura da época. A Professora Ana Lúcia Pastore cita o Jurista Sady Gusmão que define o curandeirismo como:
“Pratica da medicina por pessoas não legalmente autorizadas, em regra por maio de benzeduras, passos, beberagem e praticas de superstição. Não obstante pode ser exercidos com o emprego de medicamentos comuns, remédios da flora medicinal, infusões, etc.”. (GUSMÃO, 1940, p. 127)

Neste caso, pode ocorrer um conflito do texto legal com as tradições culturais, uma vez que essa prática é comum em muitas religiões. Somente o caso concreto pode destacar a prática ilegal do curandeirismo. O que dizer então dos casos atuais?
Em um caso de julgamento ocorrido na Justiça do Distrito Federal, temos noticiado no site Direito.com.br o seguinte:
“Sem ter qualquer habilitação legal para o exercício da profissão de farmacêutico, Newton e Ana diagnosticavam doenças e prescreviam tratamentos usando as informações prestadas pelos próprios pacientes. A partir destas informações, elaboravam mapas astrais e utilizavam substâncias desconhecidas, cuja eficácia, ou eficiência curativa, ainda não foram comprovadas pela ciência.
Mas, não ficavam apenas nisso. Aproveitando da boa fé e desesperança dos seus clientes, em grande parte doentes terminais de câncer ou contaminados com o vírus da AIDS, induziam-nos à celebração de ritual espiritualmente alegórico, forjando a mentalização de símbolos esotéricos e a invocação de forças sobrenaturais, fazendo com que os próprios pacientes, de olhos vendados, escolhessem os remédios que deveriam ser ministrados para a cura das doenças que os afligiam.”

Pelo fato, percebe-se claramente a prática tipificado pelo Direito Penal, no artigo 284:
Art. 284 - Exercer o curandeirismo:
I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;
II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
III - fazendo diagnósticos:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.

Alguns “profissionais” porém, agem de boa-fé de acordo com seus precedentes culturais, é o caso, por exemplo, das seitas religiosas (não caracterizando crime), porém outros ludibriam de maneira acintosa as pessoas que por eles são consideradas ignorantes ou despreparadas, acabam por ceder a fraude. Por não haver muitas vezes nenhuma solução racional ou medicinal para seus problemas elas resolvem aceitar esse tipo diferente de “auxilio” para solucionar suas questões (sejam elas de saúde ou não). Em alguns casos o prejuízo advindo desse tratamento pode causar até a morte. Neste sentido o Código Penal procurar tipificar devidamente essa prática como delito criminal.
Em relação ao charlatanismo o artigo 283 do Código Penal identifica como a ação que consiste na vontade de inculcar (aconselhar, recomendar) ou noticiar a cura por meio secreto ou infalível. Neste caso o aspecto legal declara enfaticamente a prática do dolo para enganar. Para este caso nota-se que o efeito "cura" não importa: quer a vítima tenha ou não se curado, o charlatão continua incurso no tipo criminal.
O charlatão é, para o Direito, um tipo de fraudador. Segundo o doutrinador Magalhães Noronha “É o estelionatário da Medicina; sabe que não cura; é o primeiro a não acreditar nas virtudes do que proclama, mas continua em seu mister, ilaqueando, mistificando, fraudando, etc.”
Da mesma sorte que ocorre com o curandeirismo a análise de cada caso é essencial para determinar a criminalidade do fato. Cita-se por exemplo o caso disseminado pelo apresentado Ratinho em seu programa de televisão e que acusava o deficiente físico Marcos Juliano da Penha da prática de charlatanismo. Após decorridos nove anos:
“A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, por unanimidade, manter a condenação por danos morais de R$ 120 mil imposta pelo Tribunal de Justiça de Goiás, com direito a correção monetária. Ratinho, conhecido pelo programa sensacionalista, disse que a história tinha conteúdo eminentemente jornalístico. O STJ manteve o entendimento de segunda instância de que "não é correto simplesmente acusar o pastor da igreja e o autor por charlatanismo, sem oportunizar o direito de defesa”.(OPERADORES DO DIREITO, 2009)

Neste caso a Justiça condenou o apresentado por entender que o caso não se enquadrava como ilícito penal, portanto, cabível ao prejudicado a indenização por perdas e danos. Neste caso não houve a preocupação do apresentado em avaliar todos os fatos, lançando juízo de valor sem conhecimento devido.
Por outro lado temos casos como o ocorrido com o Sr. Juarez Alves da Silva, que condenado por curandeirismo, charlatanismo e extorsão, teve Habeas Corpus concedido pela 2a. Turma do Supremo Tribunal Federal, liberando-o das acusações de extorsão e charlatanismo. O Caso é interessante, pois o próprio réu acreditava na prática de suas curas, convencendo da mesma forma o pai da vitima(uma criança), que seria capaz de curá-la de câncer. Imbuído nesse espírito o pai da criança por diversas vezes pagou ao Sr. Juarez pelos serviços de curandeirismo. O relator do acórdão menciona em seu parecer que não verificou a prática pelo réu de inculcar meio secreto ou infalível para a cura. Ocorreu somente a prática de curandeirismo. É interessante notar que a crença naqueles atos foi demonstrado em princípio pelo representante da vítima e por fim pelo curandeiro.
Segundo Nicelly Campanari, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem decidido muitos casos de charlatanismo, vejamos:

“EMENTA: EXERCICIO ILEGAL DA MEDICINA. CHARLATANISMO. CHARLATANISMO - ATUACAO COMO CRIME-MEIO PARA SE CHEGAR AO DELITO-FIM ABSORCAO PELO DELITO MAIS GRAVE. ADEMAIS, AUSENCIA DE PLENA COMPROVACAO DE TODOS OS SEUS ELEMENTOS INTEGRADORES. EXERCICIO ILEGAL DA MEDICINA - ACUSADO QUE, SENDO MEDICO, ATENDIA COMO TAL E MINISTRAVA MEDICACAO A SER ADQUIRIDA EM ESTABELECIMENTO COMERCIAL ESPECIALIZADO. CONDENACAO MANTIDA. INTELIGENCIA DO ARTIGO 282 DO CODIGO PENAL. DECLARACAO DE EXTINCAO DE PUNIBILIDADE DE UM DOS AGENTES, EM RAZAO DA MENORIDADE, DADA A REDUCAO DO PRAZO PRESCRICIONAL, E PARCIAL PROVIMENTO DO OUTRO APELO. (Apelação Crime Nº 297005175, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Alçada do RS, Relator: Marco Antônio Ribeiro de Oliveira, Julgado em 09/04/1997)”.

Campanari ainda menciona que:
“trata-se de uma prática cada vez mais comum, haja vista que muitos médicos/ esteticistas/... se aproveitam da vulnerabilidade/ falta de conhecimento técnico de seus pacientes para prometer técnicas infalíveis, principalmente no que tange a procedimentos estéticos.”

Neste sentido observamos a influência da cultura em muitas práticas de curandeirismo, firmado no credo de que a solução apresentada solucionará o problema. Provavelmente em muitos casos este aspecto biológico provoque a cura. Por outro lado, muitos em nossa sociedade aproveitam-se dessas mesmas crenças para praticar o crime.
No Brasil, pelas circunstâncias de nossa formação essa prática pode ser facilitada, uma vez que, mesmo quando combatida, precisa de discernimento.

CONCLUSÃO

A diversidade de nossa cultura por vezes trazem grandes preocupações, uma vez que implantam-se na sociedade ao longo da história práticas positivas e práticas negativas. Elas assim se apresentarão dependendo do foco da visão. A simples observação feito de uma das faces da cultura comprova que estamos diante de um universo imenso de possibilidades. No campo da operacionalização do direito esta análise da sociedade é fundamental para o bom discernimento das causas que enfrentaremos.
Percebemos que na questão do curandeirismo e charlatanismo houveram diversas interpretações, conforme avançava a história da sociedade. Provavelmente no futuro venhamos a ter uma visão diferenciada desta mesma questão.
Compreender o homem no convívio diário, relacionado aos problemas individuais traz a vantagem de avaliar melhor os fatos. Neste sentido, entender como se desenvolve a cultura auxilia neste processo. Saber a origem de diversos comportamentos sociais, certamente direcionam as tomadas de decisão de cada operador do Direito.
Como bem mencionou o professor Roque de Barros Laraia:
“Cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre os povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir”.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ABREU, João Aurélio de. TJDFT julga caso de curandeirismo. Mar.2001. Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2009.

CAMPANARI, Nicelly Alessandra Bohatch. Responsabilidade penal do médico. Clubjus, Brasília-DF: 22 maio 2008. Disponível em: . Acesso em: 06 out. 2009.

DUARTE, Júlio Cesar. Ratinho terá de pagar R$ 120 mil por danos morais. Ago. 2009. Disponível em: . Acesso em: 03 mar. 2009.

FERRETI, Mundicarmo. Caderno Pós Ciências Sociais. v.1 n.1 mar/jul, São Luis/MA, 2004. Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2009.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

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